Acesso a novos tratamentos para o mieloma múltiplo no Brasil: desafios e soluções
Última atualização em 11 de janeiro de 2024
Convidados debatem a falta de dados sobre a doença no país, abordam as dificuldades de acesso enfrentadas pelos pacientes e propõem soluções para as barreiras
Na última edição do “Diálogos em Oncologia”, evento promovido pelo Movimento Todos Juntos Contra o Câncer, especialistas se reuniram para elencar os desafios em relação ao diagnóstico oportuno e acesso a novos tratamentos para o mieloma múltiplo (MM) no nosso país, além de propor soluções. Dentre os principais obstáculos apontados está a falta de dados com qualidade sobre essa doença e o alto custo das novas terapias.
O debate girou em torno do panorama sobre o mieloma múltiplo (MM) desenvolvido pelo Observatório de Oncologia e apresentado por Nina Melo, coordenadora de Pesquisa da Abrale e do Movimento Todos Juntos Contra o Câncer.
A pesquisa foi desenvolvida a partir do levantamento de dados dos três principais sistemas de informações utilizados no Brasil: Sistema de Informação sobre Mortalidade (SIM); Sistema de Informação Ambulatorial (SIA) e Sistema de Informações Hospitalares (SIH). Foram avaliadas informações referentes aos anos de 2018, 2019, 2020, 2021 e 2022.
Falta de dados qualificados é primeiro obstáculo
A pesquisadora Nina considerou que a principal dificuldade em realizar o levantamento dos dados é encontrar informações atualizadas e preenchidas por completo.
“Quando trabalhamos com os dados desses sistemas de informação, a gente ainda tem muitas informações mal preenchidas que acabam distorcendo algumas variáveis”, ela disse. Além disso, ela afirma que o fato de não termos uma estimativa oficial, fornecida pelo Instituto Nacional do Câncer, a respeito da quantidade de diagnósticos por ano também dificulta as análises.
A Drª. Maria Paula Curado, Chefe do GEECAN e ex-chefe do Departamento de Epidemiologia Descritiva da Agência Internacional de Pesquisa em Câncer da OMS, concordou e acrescentou que o Brasil possui diversas plataformas com múltiplos dados, mas esses dados não estão devidamente qualificados.
“Não sabemos os detalhes de como aquela informação chegou naquela base e é muito importante conhecermos a qualidade da informação. Sabemos que ela não é 100% fidedigna, mas precisamos saber, pelo menos, a acurácia delas, quão próximo do real elas são.”
O Dr. Breno Gusmão, hematologista da BP – A Beneficência Portuguesa de São Paulo, pontuou que a dificuldade em obter dados precisos vai muito além do cenário brasileiro. Isso acontece porque, a própria Organização Mundial da Saúde considera o MM como uma doença rara.
“A OMS considera que uma doença com menos 65 mil casos a cada 100 mil habitantes é rara, mas, na nossa rotina, vemos muitos pacientes com mieloma. Se a gente fizer uma conta com a população de São Paulo, por exemplo, temos uma quantidade significativa de casos. Para políticas públicas é um dado importante”, o médico falou.
A relevância de ter dados corretos, atualizados e qualificados, explicou Nina, é que eles são uma ferramenta para a transformação social, já que, por meio deles, é possível conhecer e entender as realidades de cada estado brasileiro.
“Não dá para construirmos políticas públicas com base em achismos ou só com a vivência do dia-a-dia. Não podemos tirar isso como uma premissa para construir algo coletivo. Estamos falando do Brasil, que é um país continental e com várias realidades diferentes. Para entendermos e conhecermos melhor esses cenários, os dados nos apoiam, trazem um panorama geral de como está essa situação e permitem comparar a situação de cada cenário.”
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O que os dados apontam?
De acordo com o levantamento apresentado pela pesquisadora, somente no âmbito do Sistema Único de Saúde, no período analisado, quase 140 mil pacientes de mieloma múltiplo foram tratados ambulatorialmente, ou seja, sem estarem internados. Foram mais de 300 mil procedimentos realizados, com custo médio de R$1.518,00 e a primeira linha de tratamento mais frequente foi a quimioterapia.
O estado de São Paulo liderou em número de procedimentos, seguido por Minas Gerais e Paraná.
Nina destacou que em quase 80% dos casos o tratamento foi iniciado com mais de 60 dias após o diagnóstico.
“Quase 80% dos casos estão fora da Lei dos 60 dias, ou seja, já temos o primeiro grande gap do tratamento no SUS”, ela pontuou.
Já em relação às internações, foram pouco mais de 35 mil internações no SUS, sendo que cada uma custou, em média, R$4.000,00 e durou cerca de nove dias.
O Dr. Gusmão disse que ao se esmiuçar essa informação, pode-se fazer algumas análises e tirar conclusões. De acordo com o exemplo dado por ele, o transplante de medula óssea autólogo é a principal razão para hospitalização dos pacientes e isso explicaria o porquê São Paulo foi o estado com maior número de internações.
“Em 2023 foi aberta a primeira unidade de transplante no Norte. Então, não é que lá não internava porque não precisava, não internava porque não tinha nem a unidade para fazer o procedimento.”
Ao apresentar os dados relacionados aos óbitos por mieloma múltiplo, Nina salientou que essas informações dizem respeito tanto ao sistema público, quanto ao privado. O motivo para isso acontecer é que esse dado é obtido a partir da certidão de óbito e o documento engloba todo mundo.
Houve pouco mais de 23 mil mortes e os estados com maiores números de óbitos são São Paulo (2.420), Minas Gerais (2.092) e Bahia (1.166). Não há uma diferença significativa entre mulheres e homens, e a faixa etária mais afetada é de 70 a 79 anos.
Acesso a novos tratamentos para o mieloma múltiplo
O Dr. Gusmão comentou que estamos passando por uma onda de inovações e, com isso, novas terapias foram criadas e, até mesmo, aprovadas pelas agências regulatórias. Porém, essas novidades têm demorado muito para chegar aos pacientes, especialmente para aqueles que fazem tratamento no SUS.
“A expectativa com as novas incorporações é aumentar a sobrevida e há um burburinho na ciência de alcançarmos a cura do mieloma. Mas como vamos lidar com isso se há uma defasagem tão grande?”, ele indagou.
A Drª. Catherine Moura, médica sanitarista, CEO da Associação Brasileira de Linfoma e Leucemia (Abrale) e membro do Conselho Estratégico do Movimento TJCC, salientou que o acesso igualitário à saúde é um direito dos pacientes brasileiros e lembrou que toda vida importa e que as iniquidades afetam diretamente a jornada de cada paciente, sua família e todos a sua volta.
“É claro que a gente precisa ter uma priorização no ponto de vista de tomada de decisão, mas não dá para considerarmos só incidência, prevalência e mortalidade. Quando se trata de Oncologia é um pouco mais complexo que isso. Toda vida importa, essa é uma jornada que causa um tremendo impacto na vida do paciente, da sua rede de apoio.”
Annemeri, farmacêutica oncológica, doutora em Ciências Farmacêuticas e especialista em incorporação de medicamentos oncológicos no SUS, reforçou o ponto que as vidas não têm preço, mas falou que, do ponto de vista de gestão dos sistemas de saúde, o custo é um dos fatores levados em consideração na hora de aprovar e incorporar os novos medicamentos. Por isso, é importante que os pacientes entendam os conceitos e discussões de custo-efetividade, oferecendo exemplos mais palpáveis, como o gasto mensal de uma família com contas, alimentação, saúde, diversão etc.
Por outro lado, ela considerou que os preços cobrados pelas farmacêuticas podem não ser justos.
“A indústria farmacêutica, muitas vezes, precifica seu medicamento com base em oportunidade. Essa justificativa que eles, normalmente, nos trazem de ‘cobramos esse valor em função de tudo que foi investido na pesquisa e tudo que foi investido e não deu resultado’ não é exatamente uma justificativa 100% aceitável. Não podemos fechar os olhos, a indústria farmacêutica tem seus acionistas e os acionistas querem lucro”, ela falou.
Já fiz um transplante de medula óssea. Posso fazer outro?
Alguns pacientes precisam de um segundo procedimento, mas isso acontece poucas vezes e, geralmente, a técnica apresenta uma boa resposta…
Possíveis soluções para o acesso a novos tratamentos para o mieloma múltiplo
Os especialistas convidados concordaram que é preciso haver uma maior negociação entre o comprador (o governo) e as indústrias farmacêuticas. Assim, todos os pacientes, independentemente de se tratarem no sistema público ou no privado, teriam acesso às terapias inovadoras.
Para a Drª. Catherine e para a Nina, os dados são um grande aliado para o governo entender quantas pessoas precisam daquela medicação, em quais locais elas estão e qual o estadiamento da doença.
A Drª. Maria Paula disse também acreditar que as informações podem ajudar na sustentabilidade do sistema, fornecendo um maior poder de negociação.
“Eu fiquei pensando muito na epidemia da AIDS quando o Brasil conseguiu negociar e abaixar o preço dos medicamentos, então por que para o câncer a gente não consegue fazer isso? O câncer, hoje, é uma epidemia, é a segunda causa de morte no mundo. Temos várias opções de tratamento, mas essas opções são caras. As indústrias querem vender? Querem. E a gente quer comprar, mas por que nós vamos comprar só pelo seu preço? Quando a gente vai negociar com a indústria farmacêutica, temos que negociar passando pelo argumento que a indústria vai ter aquele paciente por, por exemplo, mais cinco ou 20 anos, então temos que negociar em favor do paciente.”
O Dr. Gusmão sugeriu um modelo em que as agências reguladoras de cada país conversam e comparam qual foi o preço pedido pela farmacêutica para determinado medicamento. Elas chegam a uma conclusão se aquele valor é aceitável, ou não, e negociam com a indústria.
“Por que as agências não negociam entre elas e fazem essa aproximação de ‘isso está muito caro e ninguém vai comprar’?”
A Drª. Catherine ainda afirmou que “nós não estamos sozinhos. Que bom que estamos presenciando o avanço nas tecnologias, mas o impacto é global em todos os sistemas de saúde que oferecem atenção oncológica. Então, podemos aprender outros caminhos e soluções que estão sendo aplicadas, principalmente se olharmos os sistemas de saúde com comportamentos semelhantes ao nosso.”
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