Sandbox regulatório: ANS propõe planos de saúde reduzidos, mas decisão final é suspensa

Na prática, o sandbox permitiria uma cobertura bastante restrita, sem incluir internações, terapias, exames genéticos e medicamentos orais oncológicos
Por Aline Oliveira Costa
A Agência Nacional de Saúde Suplementar (ANS) anunciou a criação de uma câmara técnica para debater o sandbox regulatório — mecanismo que permite testar produtos e serviços inovadores sob flexibilização temporária de normas regulatórias. A proposta integra um conjunto de ações em desenvolvimento pela ANS, como resultado da Tomada Pública de Subsídios nº 5, da Audiência Pública nº 52 (realizada em 25/02/2025) e da Consulta Pública nº 151 (18/02 a 04/04/2025).
No entanto, durante a 5ª Reunião Extraordinária da Diretoria Colegiada (23/05/2025), foi decidida a suspensão da deliberação sobre o projeto, em razão de divergências internas e da existência de um processo no Supremo Tribunal de Justiça (STJ) que trata do tema. A deliberação final será postergada até o trânsito em julgado da decisão judicial.
Inspirada no modelo previsto no Marco Legal das Startups (Lei Complementar nº 182/2021), a iniciativa busca permitir que operadoras de planos de saúde testem, em ambiente controlado e por tempo determinado, novos produtos e serviços que não atendam plenamente à regulação vigente.
Na prática, o sandbox permitiria a oferta de planos de saúde com cobertura bastante restrita, voltados principalmente a consultas eletivas em todas as especialidades médicas e exames constantes do Rol da ANS, mas sem incluir internações, terapias, exames genéticos e medicamentos orais oncológicos. O modelo proposto, de caráter coletivo por adesão, prevê coparticipação de até 30%, preço pré-estabelecido, ausência de portabilidade de carência, reajuste por agrupamento de contratos e possibilidade de exclusão por inadimplência, fraude ou no aniversário do contrato.
A ANS defende que o projeto possibilitaria ampliar o acesso a planos de saúde mais baratos, especialmente para a população que hoje recorre exclusivamente ao SUS ou a produtos de assistência privada com baixa regulamentação, como os cartões de desconto. A Agência argumenta que as operadoras teriam maior capacidade técnica e tecnológica para organizar a jornada do paciente, mesmo em planos com cobertura mínima, desde que atuando sob regras de monitoramento específicas e temporárias.
Contudo, o projeto dividiu opiniões e gerou intenso debate entre especialistas, representantes da sociedade civil e integrantes da própria Agência. Críticos alertam que, sob o pretexto de fomentar inovação, o modelo pode precarizar ainda mais a proteção ao consumidor e abrir brechas para uma segmentação profunda do acesso à saúde. A proposta de suspender temporariamente normas criadas para garantir o mínimo de segurança assistencial e previsibilidade contratual levanta dúvidas sobre os reais beneficiários do experimento: os pacientes ou as operadoras?
Na 5ª Reunião Extraordinária da Diretoria Colegiada, realizada em 23 de maio de 2025, a ANS decidiu suspender a tramitação do projeto. A deliberação ocorreu após parecer da Procuradoria Federal junto à ANS, que recomendou cautela e sugeriu aguardar manifestação definitiva do STJ sobre a legalidade de produtos com cobertura inferior ao Rol. A Diretoria também decidiu instituir uma câmara técnica composta por especialistas para ampliar o debate sobre a pertinência e os impactos do sandbox regulatório no setor.
O caso levanta questões fundamentais sobre o papel das agências reguladoras em tempos de crise econômica e transformação tecnológica. Que tipo de inovação, na saúde, requer a suspensão de normas protetivas? Em que medida é legítimo flexibilizar direitos assistenciais em nome da ampliação de acesso? E quais os riscos de consolidar, sob o rótulo da inovação, modelos assistenciais que fragmentam ainda mais o cuidado?
Embora o debate esteja longe de se encerrar, a decisão da ANS de recuar e submeter a proposta a análise técnica mais aprofundada indica, ao menos, o reconhecimento de que mudanças estruturais no setor de saúde suplementar não podem prescindir de diálogo com a sociedade, análise jurídica rigorosa e compromisso inequívoco com a equidade e a proteção dos beneficiários.
Entre as vozes mais críticas à proposta, destaca-se o Instituto Brasileiro de Defesa do Consumidor (Idec), que ingressou com uma ação civil pública contra a ANS, alegando que a Resolução Normativa nº 621/2024 — que instituiu o ambiente regulatório experimental — é ilegal por ter sido aprovada sem a realização de Análise de Impacto Regulatório (AIR), desconsiderando os riscos aos consumidores. Para o instituto, o tipo de plano proposto não representa inovação, mas sim um pleito antigo das operadoras, com cobertura inferior ao mínimo estabelecido em lei. O Idec alerta que a proposta cria uma expectativa enganosa de acesso e amplia problemas já existentes no setor, como negativas de cobertura, reajustes abusivos e precarização dos serviços.
Além disso, o instituto argumenta que a ANS desrespeita sua missão institucional ao priorizar interesses econômicos em detrimento da proteção à saúde e à vida. A iniciativa, segundo o Idec, pode agravar a sobrecarga do SUS ao oferecer produtos que não garantem atendimento em situações graves, como câncer, AVCs e acidentes, obrigando os beneficiários a recorrer ao sistema público mesmo sendo pagadores de planos privados.
O Idec também ressalta que a suspensão da proposta representa uma vitória da pressão exercida por entidades da sociedade civil, pesquisadores, profissionais do SUS, Ministério Público Federal e do próprio corpo técnico da ANS, que, segundo o instituto, foi desconsiderado no processo regulatório.
Por fim, o instituto afirma que seguirá acompanhando a pauta para evitar retrocessos e garantir que as normas da Lei de Planos de Saúde sejam cumpridas integralmente. Para o Idec, medidas como o sandbox não apenas atentam contra direitos básicos dos consumidores, mas também refletem uma tentativa de reconfigurar o setor sob uma lógica mercantil, em prejuízo da equidade, da previsibilidade e da própria função pública da regulação.
O Departamento de Políticas Públicas da Abrale e da Abrasta vêm acompanhando de forma ativa a discussão sobre o Sandbox Regulatório, tendo participado de reuniões sobre o tema, incluindo a audiência pública promovida pela ANS, e já contribuído anteriormente na consulta pública relacionada à iniciativa. Alinhamo-nos ao posicionamento do IDEC ao destacar que a proposta pode impor novos obstáculos aos pacientes, que já enfrentam dificuldades significativas decorrentes das condições precárias em que muitos planos de saúde vêm operando. A iniciativa tende a acentuar ainda mais a precarização existente no sistema, motivo pelo qual reafirmamos nosso compromisso com a defesa incondicional dos direitos dos pacientes ao acesso pleno, equitativo e de qualidade à saúde.
* A Abrasta faz parte da Comissão Intersetorial de Saúde Suplementar (CISS) do Conselho Nacional de Saúde.