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O indígena também pode ser um paciente com câncer

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O indígena também pode ser um paciente com câncer

Por Thais Mendes Souza
Analista de Políticas Públicas e Advocacy da Abrale e relações institucionais do Movimento TJCC

Se você é não-indígena, talvez esteja se perguntando o que esse tema tem a ver com você. A verdade é que este artigo dificilmente chegará a uma pessoa indígena de forma espontânea, por motivos que se assemelham às barreiras de acesso à saúde enfrentadas por essa população. Mas temos a oportunidade de dar visibilidade a essa questão, porque os povos indígenas estão mais próximos da realidade do câncer do que muitos imaginam.

Embora o acesso à saúde seja um direito, sabemos que as barreiras não são iguais para todos. O Brasil, um país justificado pelas suas dimensões continentais, tem a desigualdade social em saúde evidente em cada região, como apontado pelo estudo “Meu SUS é diferente do seu SUS” do Instituto Oncoguia. Mas o que acontece quando o câncer também não é igual ao seu câncer, simplesmente porque minha raça ou etnia é diferente da sua?

É o que acontece com os indígenas quando a taxa de mortalidade por câncer infantojuvenil revela um cenário preocupante. Segundo o estudo realizado pelo Instituto Desiderata, publicado em 2021, já é uma realidade as crianças indígenas morrem mais por câncer do que outras crianças com raça/cor distintas no Brasil.

Apesar da escassez de dados nacionais específicos, estudos regionais têm ajudado a compreender a relação do câncer na população indígena, apontando para a urgente necessidade de políticas públicas de saúde mais eficazes e intervenções futuras.

No Acre, as leucemias estão entre as cinco principais causas de morte por câncer entre a população indígena. Um estudo observacional revelou que, entre os 81 óbitos por câncer, a maioria (59,3%) ocorreu entre homens com mais de 70 anos. Os cânceres mais comuns foram de estômago, fígado, cólon e reto, leucemia e próstata. Entre as mulheres, os principais tipos de câncer foram cervical, estômago, fígado, leucemia e útero, com os casos de câncer de estômago e colo do útero representando 49% do total de óbitos. (SANTOS et al., 2019).

O estudo também aponta que agentes infecciosos, condições socioeconômicas desfavoráveis e o difícil acesso aos serviços de saúde estão entre os fatores que explicam a elevada mortalidade por câncer entre os indígenas do Acre.

Neste contexto, é fundamental fortalecer a atenção aos fatores de risco modificáveis e às estratégias de prevenção do câncer e cuidado integral. Não se pode ignorar que a população indígena carrega em sua história a marca de uma luta contínua pela demarcação de terras e pelo reconhecimento de seus direitos. Essas batalhas frequentemente colocam suas vidas em risco devido à opressão e às violências enfrentadas. Somar a essa luta o acesso à saúde e o enfrentamento do câncer sem nenhum suporte adequado é o reflexo do abandono e negligência que pode agravar ainda mais a vulnerabilidade dessas comunidades, se nada for feito.

Em 2023, o Movimento Todos Juntos Contra o Câncer levou a pauta para o Fórum Regional, edição Amapá, um estado onde a população indígena é de 11.334 pessoas, de acordo com o censo demográfico de 2022. O evento, organizado em parceria com a ONG Carlos Daniel, contou com um painel de especialistas e atores envolvidos na saúde indígena para discutir a relação da população indígena com o câncer na região Norte e Nordeste.

Além das dificuldades de acesso às aldeias, foram destacadas a falta de integração entre os dados do Sistema Único de Saúde (SUS) e a precariedade no registro de informações de saúde em oncologia. Esses problemas dificultam um diagnóstico mais preciso da situação local. Quélita Moraes Mendonça, representante do Distrito Sanitário Especial Indígena do Amapá e Norte do Pará (DSEI), com sede no Distrito de Oiapoque, relatou que o DSEI atende cerca de 14.380 indígenas cadastrados no sistema de informação. No entanto, o sistema do DSEI é atualizado apenas a cada três meses, e o cadastro ainda é feito manualmente, individualmente.

A estruturação de um sistema mais eficiente de vigilância e monitoramento demográfico é apenas uma das muitas diretrizes que precisam ser aprimoradas na Política Nacional de Atenção à Saúde dos Povos Indígenas, em vigor desde 2002 no Brasil.

Curiosamente, no mesmo período em que o 5º Fórum Norte e Nordeste foi realizado, em julho de 2023, o Projeto de Lei que deu origem à Política Nacional de Prevenção e Controle do Câncer (Lei nº 14.758, de 19 de dezembro de 2023) estava em tramitação. Durante a discussão do projeto, o então senador Carlos Viana apresentou a emenda nº 2, que propunha a inclusão, no Artigo 03 da lei, da “articulação com o Subsistema de Atenção à Saúde Indígena, para a prevenção e o controle do câncer entre os povos originários” e da “integração com o Sistema Único de Assistência Social (SUAS), com vistas a garantir os direitos da pessoa com câncer”. O senador justificou a emenda destacando a necessidade urgente de combater a alta mortalidade por câncer entre os povos indígenas.

Infelizmente, a emenda foi rejeitada pelo Senado em novembro de 2023. Segundo o relator da matéria, Senador Hiran Gonçalves (PP-RR), o Subsistema de Atenção à Saúde Indígena já é parte integrante do SUS, conforme previsto na Lei Orgânica da Saúde, e, embora a proposta fosse considerada meritória, foi considerada redundante no atual arcabouço legal.

Apesar da rejeição da emenda, isso não impede a necessária articulação entre a atenção à saúde indígena e a atenção oncológica. A verdadeira questão é se o Ministério da Saúde está observando esse problema de forma planejada, com orçamento adequado e vontade política para realizar as mudanças necessárias.

Essa responsabilidade intersetorial está de alguma forma prevista para todos nós, especialmente no que a Lei da Política do Câncer estabelece como diretriz para a prevenção e promoção da saúde. A lei descreve a necessidade de identificar e intervir nos determinantes e condicionantes dos diversos tipos de câncer, orientando-se para o desenvolvimento de ações intersetoriais que são responsabilidade tanto do poder público quanto da sociedade civil, com o objetivo de promover a saúde e a qualidade de vida (Art. 5º, inciso I).

Em um momento de espera pela regulamentação dessa lei, é essencial que a atenção ao câncer entre os povos indígenas, quilombolas e outras comunidades tradicionais esteja no centro das discussões. Além da integralidade do cuidado, devemos lembrar que essas populações também são brasileiras, sendo a saúde um direito de cidadania garantido a todos eles, ou seja, também são ou podem vir a ser pacientes oncológicos.

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